terça-feira, 12 de julho de 2011

O velho cão da boemia a um dia de se casar

A princípio, Walter teve de se desfazer das bermudas tactel e dos pares de sapatênis. Deixou de lado as camisas estampadas e o brinquinho de argola. Abadás de micaretas passadas não veria mais. O infalível gel fixador deu lugar ao creme para pentear. Isso, no decorrer de, apenas, o primeiro ano de namoro.

Já há algum tempo, ele vinha se preparando para a iminente transfomacão. Teria de jogar para escanteio o compromisso de acompanhar as séries A, B e C do Brasileirão diariamente pela TV. Desde o mês anterior, passara a abrir mão dos campeonatos turco e português. Será preciso se adaptar a dividir o lar, seu tempo e atenções com a esposa. Eventualmente vai assistir à melosa novela das nove com a amada.

A vida é mesmo assim, feita de fases.

E é bom ir se acostumando com a ideia de compartilhar com a mulher a direção de seu tão estimado Toyota Corolla. Até então, o leme do possante jamais fora manejado por outrem. Com sua dama, aprendeu a ajeitar a cama e tampar a pasta de dente. Foi pela primeira vez a um restaurante japonês e à cidade histórica de Tiradentes. Das malandras viagens só com amigos, já se acostumara a estar ausente. Logo ele, o líder nato da moçada.

O velho cão da boemia está a um dia se casar.

Quanto à mais significativa das mudanças, no entanto, seu coração quer relutar. Essa sim, irreversível, mas ele sabe que tem de assimilar. Diz respeito àquilo que o faz se sentir homem. Instinto voraz, algo maior do que ele.

A bem da verdade, é muito comum entre os machos manter tal hábito, mesmo depois de casados, enquanto tiverem energia. "Mas não sou como os outros" — insiste o noivo em tentar convencer a si próprio.

Na véspera de seu adeus à vida de solteiro, ele decide que faz jus a uma recaída. "Voltarei lá, mas será a última vez" — estabelece. Logo na entrada, reencontra alguns de seus cúmplices. Gente boa, mas sem futuro. Não dizem nada que presta, estão ali à caça de prazer e diversão.

Walter se emociona ao imaginar que nunca mais pisará o recinto onde tanto se saciou. Sente uma ponta de inveja quando avista um companheiro, completamente suado e satisfeito, relaxando ao sabor de uma cerveja gelada.

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Tentando não pensar em mais nada, lá está Walter, enfim, pela derradeira vez, fazendo aquilo de que mais gosta: vestindo a camisa número 6 do time dos solteiros, na pelada de sexta-feira da firma. Titular absoluto da lateral esquerda durante nove anos, ele deixou escorrer uma lágrima assim que ouviu o apito inicial. O time dos casados joga com dois volantes e três homens de armação. Não há lugar para um ala de contenção. Por isso Walter decidira, com imenso pesar, pendurar as chuteiras ao fim da peleja.

É difícil aceitar, mas a vida é assim, feita de fases.

3 comentários:

  1. O mundo dá voltas. Nada é eterno.

    E sempre há lugar para um lateral habilidoso de volta.

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  2. Você é o Kara ... Tem futuro como escritor. Deveria escrever mais e arranjar um PAItrocínio, nem que seja emocional, e editar um livro.

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  3. um dos meus preferidos!

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